Em 5 de novembro de 2015, o rompimento da barragem de Fundão, de responsabilidade da Samarco Mineração S.A., controlada pela Vale e pela BHP, marcou um dos maiores crimes socioambientais do Brasil. O colapso da estrutura não apenas resultou na destruição de parte significativa do Rio Doce e de sua biodiversidade, mas também ceifou vidas, desestruturou e impactou duramente o território.
Nos nove anos que se seguiram ao desastre, as comunidades atingidas pela lama tóxica enfrentam desafios constantes relacionados à contaminação do rio, à saúde pública e à recuperação econômica, enquanto lidam com as consequências profundas e persistentes que alteraram sua relação com o território e os recursos naturais locais. A devastação de ecossistemas e as perdas humanas e econômicas perduram até hoje, refletindo a dificuldade em restabelecer as condições de vida pré-desastre.
No dia 25 de outubro deste ano, governo federal, Estados de Minas e Espírito Santo, Instituições de Justiça e empresas poluidoras assinaram um acordo que finaliza as negociações do processo de repactuação do caso Samarco, que iniciou-se com o objetivo de reavaliar os compromissos de reparação. Chamado de novo acordo de Mariana, essa negociação marca uma realidade comum aos 9 anos deste processo reparatório: a ausência de participação das pessoas atingidas.
Apesar de ainda aguardar a homologação pelo Supremo Tribunal Federal – STF, este acordo estabelece uma reorganização das medidas de reparação, recuperação e compensação socioambiental e socioeconômica para os danos provocados pelo rompimento da barragem de Fundão, transferindo a responsabilidade para a gestão dos 100 bilhões de reais destinados às ações identificadas como “obrigação de pagar”, para a União, Estados de Minas Gerais e Espírito Santo e os 49 municípios atingidos.
A busca pela reparação agora chega em um outro formato. Segundo o novo acordo, serão diversos fundos destinados a áreas críticas e que nunca tiveram soluções efetivas, como recuperação ambiental, saneamento básico, pesca, programas de transferência de renda, entre outros. A população atingida ainda está se apropriando dos termos do acordo de repactuação ao qual teve acesso apenas a partir de sua assinatura há pouco mais de uma semana, mas já tem manifestado descontentamento com a ausência de ações efetivas que pudessem trazer uma maior segurança às comunidades, seja no âmbito financeiro, alimentar, e na manutenção dos modos de vida às margens do rio.
Ao longo de todo o período de negociação, sem a participação das pessoas atingidas, foi criada uma expectativa de que a reparação pudesse ser ampliada, e que direitos fossem garantidos às pessoas que foram excluídas do processo. Mas o que se observa, é que a expectativa não foi atendida, e agora os territórios buscam meios de compreender e ter acesso ao que foi elaborado para um novo processo reparatório.
A partir dessa nova estrutura de reparação, os territórios atingidos enfrentam a necessidade urgente de se reorganizar e colocar em prática propostas coletivas para acessar os programas e fundos. Essa reestruturação exige que as comunidades trabalhem em conjunto para desenvolver projetos que atendam às suas necessidades locais.
Nesse contexto, as rodas de diálogo “Qual território que queremos?”, organizada pela Assessoria Técnica Independente do Centro Agroecológico Tamanduá – CAT/ATI, reflete o esforço coletivo das comunidades para a reconstrução de seus territórios, discutindo e identificando os principais desafios e delineando caminhos para o que se espera de uma reparação justa.
Entre os meses de abril e julho de 2024, comunidades de Tumiritinga e Galiléia, pertencentes ao Território 05 da Bacia do Rio Doce, se reuniram para a realização das rodas de diálogo. O objetivo principal foi a construção conjunta de propostas de reparação e desenvolvimento territorial, respondendo à pergunta central: “Qual é o território que queremos?”. Durante os 14 encontros realizados com diferentes grupos — ribeirinhos, pescadores, comerciantes, assentados de reforma agrária, entre outros — as comunidades elencaram diversos desafios e discutiram propostas para enfrentar os danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão em 2015.
Principais desafios
1. Acesso à Água de Qualidade: uma urgência permanente
Um dos maiores desafios relatados nas reuniões foi o acesso à água de qualidade, tanto para consumo humano quanto para a irrigação e produção agropecuária. Desde o desastre-crime, a contaminação do rio Doce e de seus afluentes trouxe consequências graves para as comunidades ribeirinhas e para aqueles que dependem desta água para suas atividades econômicas. Além disso, os frequentes episódios de enchentes carregadas de rejeitos agravam a situação, pois depositam lama tóxica em áreas produtivas e residenciais.
Em praticamente todas as localidades que participaram dos diálogos, a escassez de água limpa e de confiança foi apontada como um problema grave e crescente. Em muitas comunidades, como a de Ribeirinhos de Galiléia, a confiança na água fornecida pelos serviços públicos é extremamente baixa, levando os moradores a buscar fontes alternativas. O problema da água também afeta diretamente a saúde pública, com aumento de doenças gastrointestinais e dermatológicas, agravadas pela falta de água adequada.
2. Saúde Pública e Danos Psicológicos
Outro desafio recorrente foi a precariedade no atendimento de saúde. Desde o rompimento, as comunidades observaram um aumento no número de doenças e uma piora geral nas condições de saúde da população. A exposição contínua à água contaminada e à lama de rejeitos, combinada com o estresse psicológico gerado pela perda de meios de subsistência e pelas incertezas sobre o futuro, tem impactado tanto a saúde física quanto a mental das pessoas atingidas.
O desejo por um atendimento de saúde mais eficiente foi unânime. Em quase todas as reuniões, os participantes sugeriram a contratação de especialistas, como dermatologistas e gastroenterologistas, para atender às novas demandas de saúde relacionadas à contaminação. Também foi pautada a melhoria das estruturas de saúde, tanto em nível municipal quanto comunitário. Em várias localidades, como no Centro de Galiléia, foi proposto o fortalecimento das unidades de saúde locais, com a oferta de medicamentos gratuitos e a melhoria dos equipamentos de atendimento.
Os danos psicológicos também foram abordados em diversas comunidades, especialmente entre os pescadores de Tumiritinga, que demonstraram desilusão quanto à recuperação do rio e às perspectivas de retorno às suas atividades. A saúde mental, agravada pela insegurança financeira e pela destruição do modo de vida tradicional, tem sido uma preocupação constante.
3. Economia Local e Desemprego
A paralisação de atividades econômicas em decorrência da contaminação do rio Doce afetou duramente a economia local. Comerciantes e pescadores, por exemplo, relataram a perda de renda e a dificuldade de obter compensações adequadas das ações executadas pela Fundação Renova, responsável pela reparação dos danos. Em Tumiritinga, a atividade comercial, outrora impulsionada pelo turismo relacionado à “Praia do Jaó”, viu seu movimento despencar, resultando em lojas fechadas e na falta de emprego e renda.
Os pescadores relataram que a pesca no rio Doce, fonte histórica de sustento, se tornou inviável, não apenas pela contaminação das águas, mas também pela desconfiança em relação à qualidade dos peixes. Muitos pescadores manifestaram falta de esperança no retorno da pesca, afirmando que o Auxílio Financeiro Emergencial (AFE) deveria ser vitalício, dada a impossibilidade de retomar suas atividades de forma plena. Em outras comunidades, como nos assentamentos de reforma agrária, a perda de áreas produtivas, somada à falta de irrigação adequada, compromete a produção agrícola.
As propostas das comunidades
1. Acesso à água de qualidade
Para enfrentar o desafio do acesso à água de qualidade, diversas propostas foram elaboradas pelas comunidades. Em Beira Rio II, a captação de águas de córregos alternativos, como o Boa Vista e o São Tomé, foi vista como uma possibilidade viável a médio prazo. Além disso, foram sugeridas a instalação de poços artesianos e o tratamento da água dos poços já existentes. Para os Ribeirinhos de Galiléia, foi apontada a necessidade de um auxílio financeiro durante os períodos de enchentes e a limpeza dos rejeitos no leito do rio Doce, particularmente na barragem de Candonga, como uma ação de longo prazo.
Em várias comunidades, como Limeira e Águas da Prata, em Tumiritinga, foi proposta a perfuração de poços profundos com maior vazão para atender tanto às demandas de consumo humano quanto às necessidades de irrigação. No entanto, a dependência de ações externas, como o fornecimento de água mineral, ainda é vista como uma medida paliativa para o curto prazo.
2. Melhorias na Saúde Pública
No campo da saúde, as propostas das comunidades incluem tanto medidas imediatas quanto estruturais. A curto prazo, a contratação de médicos especialistas e a distribuição de medicamentos específicos para as doenças dermatológicas e gastrointestinais foram demandas centrais. Em longo prazo, em comunidades como o Centro de Galiléia, foi sugerida a reativação e ampliação de hospitais e a construção de unidades de saúde com melhor infraestrutura.
Para o assentamento Águas da Prata I, foi proposto o fornecimento regular de água mineral, a melhoria do acesso à energia elétrica para o bombeamento de água e a instalação de painéis solares para garantir o funcionamento contínuo dos equipamentos agrícolas. Essas medidas são vistas como fundamentais para a retomada das atividades produtivas e a garantia de saúde da população.
3. Recuperação Econômica e Social
No que tange à recuperação econômica, a reestruturação do comércio e do turismo local foi apontado como essencial para revitalizar a economia das cidades atingidas. Os comerciantes de Tumiritinga, por exemplo, sugeriram um plano que abarcasse não só a compensação financeira, mas também apoio contínuo para revitalizar os negócios afetados. Foram discutidas alternativas como linhas de crédito facilitadas, programas de capacitação e incentivos à inovação e à promoção do comércio e turismo local.
Já os pescadores, em sua maioria descrentes quanto à recuperação do rio, veem a necessidade de pensar em alternativas econômicas, como a criação de cooperativas e iniciativas comunitárias voltadas para outras atividades produtivas. No entanto, muitos relataram a dificuldade de abandonar a pesca, que faz parte de suas tradições culturais e familiares.
4. Propostas para a Melhoria de Infraestrutura e Lazer
A falta de espaços de lazer também foi apontada como um fator que afeta a saúde mental e o bem-estar das comunidades, especialmente das crianças e dos jovens. Em localidades como o assentamento Cachoeirinha, em Tumiritinga, as mulheres sugeriram a construção de áreas de lazer como forma de conter o avanço de problemas de saúde mental, como a depressão. Em outras comunidades, a revitalização de espaços comunitários foi vista como uma maneira de restabelecer o tecido social, abalado pela perda das atividades culturais e recreativas. Além disso, a construção de cozinhas comunitárias, como proposto em Boa Esperança, pode fortalecer as atividades econômicas das mulheres.
Um Futuro em Construção
A 4ª rodada das rodas de diálogo “Qual território que queremos?” trouxe à tona não apenas os desafios profundos que as comunidades do Território 05 enfrentam, mas também a força e resiliência nas propostas coletivas elaboradas ao longo do processo. Nove anos após o rompimento da barragem de Fundão, as comunidades atingidas continuam a carregar cicatrizes socioambientais e econômicas, mas também revelam uma determinação em construir um futuro mais justo.
Embora o novo acordo de Mariana imponha uma reestruturação dos processos de reparação e traga incertezas quanto ao verdadeiro alcance das medidas propostas, a disposição das comunidades em buscar alternativas locais para seus problemas demonstra a auto organização coletiva como força destes territórios. Cada proposta apresentada nas rodas de diálogo — seja para garantir água de qualidade, fortalecer o atendimento de saúde ou revitalizar a economia — reflete um desejo compartilhado de reconstruir um território onde as pessoas possam viver com dignidade e autonomia.
A atuação da Assessoria Técnica Independente (ATI) tem sido fundamental para a organização e informação das comunidades, assim como no levantamento e sistematização de demandas construídas a partir das necessidades e dos apontamentos feitos pelas pessoas atingidas. No entanto, o verdadeiro desafio está em possibilitar que os compromissos sejam cumpridos de forma efetiva e que as vozes das comunidades sejam respeitadas em todas as etapas de implementação.
Assim, mesmo que o caminho para uma reparação integral ainda pareça distante, a participação ativa dos atingidos e o fortalecimento de seu protagonismo são passos indispensáveis para transformar o futuro do Território 05. Mais do que a reconstrução de infraestruturas e ecossistemas, as comunidades buscam a reconstrução de suas identidades, de suas economias e da confiança em um futuro onde suas crianças e jovens possam ter acesso a um ambiente digno e saudável.
Assista ao vídeo produzido durante os encontros: https://youtu.be/g-EyRiGLd6E?feature=shared
Texto por Andressa Cruz | CAT/ATI
Imagens por Wan Campos| CAT/ATI e Ana Miranda | CAT/ATI