Mulheres atingidas pelo desastre-crime da Samarco tem seus direitos negados e seguem invisibilizadas no processo reparatório

Não reconhecimento em programas reparatórios e agravo de danos à saúde física e mental marcam a vida das mulheres atingidas nos municípios de Tumiritinga e Galiléia, segundo levantamento feito pelo CAT/ATI

Por Andressa Zumpano | CAT/ATI

“Pra mim ser mulher atingida com o crime da Samarco é ser uma mulher que teve que se reinventar, né? Buscar outras alternativas”, Maria Aparecida, assentada pela reforma agrária e produtora rural do Assentamento Cachoeirinha, em Tumiritinga/MG, expõe a realidade de muitas mulheres atingidas da Bacia do Rio Doce, que com o passar dos anos convivem com o agravo das vulnerabilidades sociais em seus territórios causadas pelo desastre-crime da Samarco (VALE/BHP), sobretudo com questões de gênero. 

As experiências vivenciadas pelas atingidas da Bacia do Rio Doce não ocorrem de maneira particular, considerando que diante de crimes e conflitos socioambientais sobretudo em países do sul Global, são as mulheres que estão na linha de frente da defesa de seus territórios, seja através da reprodução da força de trabalho que se dá desde a esfera doméstica, seja no protagonismo político e elas que primeiramente são atingidas por violências decorrentes desses conflitos. 

Segundo Lorena Cabnal, indígena xinca-maya da Guatemala e precursora do feminismo comunitário territorial, “defender o território-terra e não defender o território-corpo das mulheres é uma incoerência política…e qualquer luta contra mineração, agrotóxicos, transgênicos ou quaisquer possíveis ameaças às terras, águas, bichos, plantas deve ser também uma luta pela emancipação das mulheres e seus corpos”. Dessa forma, os agravos de vulnerabilidade ocorridos no desastre-crime da Samarco (VALE/BHP), implicou  diretamente em grupos sociais que já se encontravam em situações de desigualdade social ou de gênero.  

Para as mulheres atingidas da Bacia do Rio Doce, essa desigualdade se evidencia a partir de uma série de violações de direitos que concernem aos seus meios de trabalho, relações sociais, familiares e autonomia financeira. Segundo levantamento feito pela Assessoria Técnica Independente do Centro Agroecológico Tamanduá (CAT/ATI), após um ano de trabalho junto às atingidas do Território 05, que abrange os municípios de Tumiritinga e Galiléia, os principais danos relatados pelas mulheres foram referentes à indenização, cadastros e à saúde física e mental. 

Invisibilidade nos cadastros e programas indenizatórios

A autonomia financeira das mulheres atingidas foi fortemente afetada pelo desastre-crime, seus afazeres relacionados ao trabalho e renda foram prejudicados, estes que são diversos e possuem desde um vínculo mais estreito com o rio, como a pesca, agricultura ou atividades de lavadeiras, também os serviços domésticos e até outras formas de trabalho ligadas ao comércio formal e informal. O desastre prejudicou não só a relação direta com esses trabalhos, mas toda rede que os alimentava, como vendas e trocas de produtos. A grande maioria dessas mulheres sequer conseguiram restabelecer suas condições financeiras, o que as prejudica social e psicologicamente. 

Segundo relatório “Rompimento do Fundão na perspectiva das mulheres atingidas” produzido pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) no ano de 2022,  “ao longo dos anos em que opera o processo reparatório, as vozes das mulheres não vêm sendo ouvidas. Embora elas representem a quase metade das pessoas atingidas (49,3%), são apenas 39% das pessoas presentes no momento do cadastramento, contra 61% dos homens. “Em outras palavras, parcela considerável das mulheres atingidas teve a sua declaração feita por um homem e não por si mesma”. Além disso, o mesmo relatório demonstra que proporção muito semelhante entre homens e mulheres se encontra na composição da figura do “responsável familiar” e na distribuição da titularidade dos auxílios financeiros e indenizações, e critica o fato de a Fundação Renova não ter estabelecido “abordagens afirmativas capazes de ampliar a representatividade de mulheres no momento da entrevista”.

Zilda Pereira, ribeirinha de Galiléia,MG Foto: Miriã Porfírio|CAT/ATI

A invisibilidade das mulheres atingidas na bacia do Rio Doce chega junto da lama de rejeitos, dos primeiros passos da Samarco e, posteriormente, da chegada da Fundação Renova nos territórios. Segundo relatos, essa invisibilidade ocorreu desde a fase inicial dos cadastros, durante a execução do Programa de Cadastro 01 (PG01), que apresentou diversas falhas e inconsistências no que se refere ao reconhecimento das mulheres enquanto população atingida e considerou um modelo patriarcal no identificação dos representantes de núcleos familiares.

“Eu e minha filha ficamos como dependentes dele. Eu era passadeira, faxineira, diarista, não sou mais nada disso hoje e nem por isso eu recebi. Colocou as mulheres como dependentes e nós trabalhava no dinheiro né…e esse dinheiro era tudo pra mim, porque eu comprava minhas coisas, pagava minhas continhas”, Zilda Pereira, ribeirinha de Galiléia, relata que os prejuízos à sua autonomia financeira.

Durante a realização do cadastro, as mulheres foram registradas como dependentes de seus maridos, inclusive ao afirmar que tinham renda própria e que possuíam empregos e autonomia financeira, segundo os constantes relatos das atingidas de Tumiritinga e Galiléia, eram informadas pelos aplicadores do formulário de que a metodologia do cadastro considerava o núcleo familiar e que elas não deixariam de receber nada por isso. No entanto, as pessoas cadastradas como dependentes não recebem Auxílio Financeiro Emergencial (AFE) e foram contabilizadas apenas para fins de acréscimo de 20% no valor pago aos cadastrados como responsáveis do núcleo familiar. Além disso, há relatos de atividades laborais que não foram registradas no cadastro. Por causa destas falhas, muitas mulheres não conseguem acessar também as indenizações via sistema Novel ou, quando conseguem, recebem apenas por uma das atividades que realizavam.

“Falar de como eu vejo o futuro, é como se a gente não sonhasse mais. Tem hora que eu me vejo assim. Parece que a gente não tem perspectiva, sonho… Mas como a gente é brasileiro e não desiste nunca, ainda vem esses pensamentos na cabeça da gente e depois a gente pára e fala ‘não, vai dar certo, a gente vai conseguir, vai chegar lá’, mas não é uma coisa fácil.Mas eu espero muito que a gente consiga retomar a vida. Espero também que as mulheres da Fase 1 sejam reconhecidas pela Renova, para que a gente invista em alguma coisa e sejam ressarcidas pelos danos sofridos, causados. Os emocionais não tem dinheiro que pague”, relata Maria Aparecida. 

Os problemas relacionados à cadastro e indenização são pautas prioritárias da população atingida e ATIs, em articulação com as Instituições de Justiça que atuam no caso Rio Doce. No entanto, não houve o reconhecimento dessa grave violação de direitos que acompanha o dia a dia das mulheres atingidas desde o rompimento. Os atores sociais envolvidos no caso exigem que sejam elaboradas novas formas de reparação justa e devida desses danos sofridos pelas atingidas, já que as alternativas apresentadas pela Fundação Renova e empresas causadoras do desastre-crime são insuficientes.

Danos à saúde física e mental

“Minha vida mudou tudo, mudou tudo depois desse rompimento, a questão da pescaria e aquele lazer que a gente tinha de pegar as crianças e levar pro rio pra ir pescar, né? As plantas estragando, um monte de plantinhas que eu gosto de plantar aí fica tudo derretendo. Aí a gente pensa, meu Deus, essa água como que tá? Essa água acho que nunca mais ela volta, eu não tenho esperança que ela volte como ela mais não…Eles (Renova) falavam assim com nós um dia que daqui a dez anos a água já está boa para consumo. Então fala com você que não está porque está com oito ano a minha torneira está tudo enferrujada”, Zilda Pereira, ribeirinha de Galiléia, traz memórias sobre a vida com um rio Doce que oportunizou além do sustento, lazer e qualidade de vida para sua família e que se perderam, trazendo impactos diretos na saúde física e mental das mulheres atingidas e seus familiares. 

É importante observar que além de fatores que afetaram diretamente à qualidade de vida da população atingida, após o desastre-crime, também houve um aumento da sobrecarga de mulheres no trabalho de cuidado e doméstico, com a interrupção das atividades laborais e do lazer pessoal, de seus companheiros, filhas e filhos, que provocam uma significativa alteração na rotina doméstica, resultando em mais tempo dedicado a esse tipo de atividade. 

Essa sobrecarga se desenvolve não apenas no trabalho doméstico por si, mas em todo o cenário de escassez e insegurança alimentar e hídrica que acompanhou a população atingida do Rio Doce nos anos que sucederam o rompimento da barragem. Por consequência, mulheres que socialmente têm responsabilidades concernentes ao cuidado do lar, da alimentação e de familiares, estiveram mais uma vez na linha de frente, gerindo a economia doméstica em torno destas problemáticas.

Gilseni Januário, assentada da reforma agrária em Tumiritinga Foto: Wan Campos| CAT/ATI

“A gente não sabe de nada da saúde da gente, igual saiu a reportagem, até a água de coco tá contaminada, o ovo da galinha tá contaminado, se for olhar por esse lado, a gente não tem futuro, acabou pra gente. Mas, vivendo um dia após o outro. Que nem aqui, são 800 metros até o rio, uma área é pasto, na outra plantação. No começo ninguém queria plantar com medo de estar tudo contaminado. Depois nós fomos voltando e plantando, no escuro né? Aí vem o estudo do juiz e solta essa, daí a gente tá sem saber”, Gilseni Januário, assentada e produtora rural, moradora do Assentamento Terra Prometida, em Tumiritinga, evidencia como o laudo pericial da AECOM, perita do juiz do caso Samarco, que expõe sobre a contaminação de peixes e produtos agrícolas, alertou a população sobre os riscos à saúde para o consumo das suas produções e plantios. 

Dentre os atendimentos realizados pelo CAT/ATI junto à população atingida do Território 05, 51,3% das pessoas atendidas são mulheres, que trouxeram questões relacionadas à saúde física e mental que somadas se referem à 33% das demandas totais apresentadas pelas atingidas. No entanto, parte das situações pertinentes à saúde mental também envolvem o impacto direito na autonomia financeira destas mulheres. 

No que se refere à saúde mental, segundo levantamento feito pelo CAT/ATI,os relatos apresentados durante os atendimentos, remetem ao descaso em que as pessoas atingidas estão vivenciando, a incerteza de um futuro com melhores condições nos aspectos sociais, culturais, familiares e comunitários. Visto que o processo de reparação, com relação à proteção social e no que se refere ao Programa 05 da Fundação Renova, não tem surtido efeito para a população. Tal programa não abrange com efetividade as demandas que são expostas pelas pessoas atingidas. 

Já com relação à saúde física, segundo análise feita a partir dos atendimentos realizados pelo CAT/ATI, a maioria das demandas tratam de relatos de problemas de pele oriundos dos usos da água advinda do Rio Doce que é utilizada para consumo, especialmente para o cozimento de alimentos, para a ingestão e para a higiene pessoal. Apresentam-se por meio de alergias, coceiras e irritações na pele em variadas partes do corpo, além de episódios de enjoos e vômitos, que ocorreram no período logo após o rompimento da barragem, mas que perduram até os dias atuais. À época, muitos deles buscaram atendimento médico, tanto público quanto privado, tiveram diagnósticos, receberam receitas e fizeram uso tópico de medicamentos, além de terem seguido orientações médicas para consumo de água mineral.

“Muito complicado até porque hoje vamos supor, vamos sair do território aqui em Minas Gerais, nós vai pra onde? Sendo que a nossa fundação está tudo aqui, os nossos pais estão aqui, nossos filhos já vem aí, entendeu? Tudo aqui e assim vai ser muito pra conviver com isso até quando?É muito complicado, quando nós vamos poder pegar um peixe que vivo pra nós comer? Quando que nós vamos voltar tomar banho no rio? Não, eu creio que nunca, vai ser muito difícil levar pra frente…a idade vai chegando e a enfermidade chega junto e já decaiu, cem por cento, cinquenta por cento, já caiu. porque nem tomava remédio de coração nem nada, pra aparecer o problema do coração, ansiedade demais, entendeu? Por causa que você chega lá, você vê as plantas morrendo tudo, essas plantas hoje dois dias, três dias, estão morrendo, isso tudo te faz ficar chateado. E aí que acontece? A doença chega e encosta”, Gredinei Meireles, ilheira e agricultora familiar da zona rural de Galiléia, retrata a realidade de seu território e a piora da saúde física e mental das mulheres atingidas. 

Maria Aparecida, assentada da reforma agrária em Tumiritinga Foto: Ana Miranda | CAT/ATI

São também mencionados a ocorrência de acidentes com escorpiões nas residências, devido à perda da vegetação nos quintais decorrente das enchentes, que vem acontecendo de forma mais intensa desde o rompimento da barragem, bem como os riscos à saúde relacionados ao aumento da ocorrência de acidentes com animais peçonhentos no Território 05.

Reforça-se que os mesmos não têm sido reparados pelas empresas responsáveis pelo desastre-crime, tampouco pela Fundação Renova, responsável pelas ações de reparação por meio do apoio à saúde física e mental da população atingida, através do Programa 014. Isso ocorre pois ainda não se reconhecem os danos individuais e coletivos à saúde da população atingida enquanto danos passíveis de reparação.
Em meio a um cenário de inúmeras violências aos territórios e corpos, as mulheres atingidas de Tumiritinga e Galiléia seguem desafiando a lógica de violações e destruição que percorre o curso do Rio Doce, permanecendo em suas comunidades e construindo estratégias coletivas e individuais de sobrevivência.

 “Já passou várias vezes pela cabeça da gente, dos meus filhos, de ir embora daqui, de procurar outro lugar. Porque pra a gente o rio Doce agora é morto, é um rio morto. E sabendo que a gente depende dele pra tudo né, porque sem água você não produz. Então assim, depois a gente vai, pára e pensa, acha que ainda tem esperança, e vai levando a vida. Mas eu falo que eu trocaria tudo pra ter a vida que eu tinha antes. Era uma vida simples, mas uma vida gostosa, uma vida muito boa”, reforça Maria Aparecida.