
Dossiê da Reparação – Volume 1 revela que Tumiritinga e Galiléia seguem sofrendo impactos como insegurança hídrica, vulnerabilidade socioambiental e desestruturação econômica ocasionadas pelo desastre-crime da Samarco (VALE/BHP) dez anos depois
O Dossiê da Reparação – Volume 1: Danos do Rompimento, produzido pelo Centro Agroecológico Tamanduá (CAT), que atua como Assessoria Técnica Independente (ATI) no Território 05 – formado pelos municípios de Tumiritinga e Galiléia (MG) -, sistematiza dados e análises sobre os impactos sociais, econômicos, ambientais e de saúde provocados pelo rompimento da barragem de Fundão, ocorrido em 2015.
Dez anos após o desastre-crime da Samarco (VALE/BHP), os danos permanecem visíveis e agravados. O documento, que inaugura uma série de dois volumes, consolida informações técnicas produzidas pela ATI e destaca as violações persistentes de direitos, a lentidão dos processos reparatórios e a urgência de medidas concretas de justiça socioambiental.
O primeiro volume reúne as produções técnicas elaboradas pelo CAT/ATI a partir de escutas, visitas de campo e dados coletados junto às comunidades locais. A análise está organizada em quatro eixos temáticos: insegurança hídrica, vulnerabilidade socioambiental, saúde física e mental, desestruturação social e econômica.
Os estudos foram complementados com informações do Registro Familiar (RF), aplicado a 361 pessoas atingidas dos dois municípios, revelando um panorama amplo e detalhado das condições de vida das famílias quase uma década após o rompimento.
Insegurança Hídrica: Água que adoece e gera desconfiança
A insegurança hídrica segue como o dano mais persistente no Território 05. A população de Tumiritinga e Galiléia vive sob risco contínuo de contaminação da água e manifesta desconfiança em relação ao abastecimento público. O texto evidencia que o rompimento liberou entre 43 e 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos com alto teor de metais pesados, ferro, manganês, alumínio, cromo, chumbo, níquel e arsênio, contaminando a principal fonte de abastecimento regional. Os municípios do Território 05, que dependem historicamente do rio Doce para o consumo humano, irrigação e dessedentação animal, foram forçados a conviver com uma água cujo uso se tornou sinônimo de risco.
Essa contaminação transformou o abastecimento público em um dilema sanitário, social e econômico, afetando diretamente a saúde e o cotidiano das famílias. Estudos técnicos e laudos oficiais apontam a presença de metais pesados e coliformes fecais na água distribuída à população, em desconformidade com a Portaria GM/MS nº 888/2021 e a Resolução CONAMA nº 357/2005.
O dossiê relata que, mesmo com a criação do Programa 32: Melhoria dos Sistemas de Abastecimento de Água, previsto no Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) de 2016, os avanços foram mínimos. As obras prometidas para 2018 ainda estavam pendentes em 2023, enquanto análises laboratoriais apontavam presença de coliformes fecais, metais e agrotóxicos na água distribuída. O diagnóstico técnico do CAT/ATI reforça que o problema deixou de ser apenas ambiental para se tornar uma crise de saúde pública.
Relatos de moradores dos dois municípios mencionam coceiras, lesões na pele, doenças gastrointestinais e problemas renais, sintomas que passaram a surgir após o desastre-crime. Mesmo após o tratamento, a água segue com parâmetros fora dos padrões legais.
“Desde o rompimento, minha filha teve alergia no corpo e vômito. Eu compro água pra beber e cozinhar”, relatou uma atingida de Tumiritinga ao CAT/ATI.
Além dos efeitos físicos, o texto destaca a dimensão social e psicológica da insegurança hídrica. A necessidade de comprar galões de água mineral, o medo de usar a água tratada e a falta de transparência nos dados de monitoramento contribuíram para aumentar a desigualdade e a sensação de abandono. Famílias de baixa renda, que dependem de programas assistenciais, arcam com custos extras de um direito que deveria ser público e garantido. Esse cotidiano de incertezas violenta o que o dossiê classifica como “legislações nacionais e internacionais de segurança hídrica e direito à água”, apontando a violação de princípios básicos de dignidade humana.
O documento também evidencia que a captação alternativa de água do Rio Caratinga, indicada pela Agência Nacional de Águas (ANA) desde 2016, nunca foi implementada pela Fundação Renova. O parecer técnico do CAT/ATI recomenda a retomada urgente dessa proposta, diante do colapso da confiança da população e da falência das medidas adotadas até o momento.

Vulnerabilidade Socioambiental: territórios fragilizados
Antes mesmo do rompimento da barragem de Fundão, Tumiritinga e Galiléia já apresentavam alto grau de vulnerabilidade social: 65% da população está inscrita no CadÚnico. O rompimento agravou a precariedade, contaminando solos, pastagens e fontes de água, e comprometendo a produção agrícola e a segurança alimentar.
O dossiê destaca que, com o rompimento, tornou-se evidente a baixa capacidade de resposta e de adaptação das comunidades locais frente aos riscos ambientais. A carência de infraestrutura, o acesso precário à informação e a ausência de medidas preventivas eficazes agravam as consequências do desastre, colocando a população em situação de risco permanente. O texto aponta que a contaminação das planícies aluviais compromete diretamente a saúde, a segurança alimentar e a dignidade das famílias atingidas, ampliando as desigualdades já existentes.
O agravamento desse cenário foi confirmado em dezembro de 2023, com a divulgação dos relatórios da perícia judicial da AECOM, que comprovaram a presença de metais pesados em produtos agropecuários irrigados ou dessedentados com água do Rio Doce, confirmando os relatos da população atingida, sobre a segurança do consumo e comercialização de suas produções como hortaliças, frutas, mel, leite, entre outros. O impacto foi direto na renda e no modo de vida das famílias: 52% deixaram de plantar. A redução da produção agrícola e da pesca artesanal comprometeu o abastecimento local e desestruturou práticas comunitárias tradicionais, transformando a insegurança alimentar em mais um legado da lama.
O documento também reforça que a vulnerabilidade socioambiental não se limita ao campo material. Trata-se de um processo complexo, que combina exclusão social, degradação ambiental e ausência de políticas estruturantes. A falta de acesso à informação e o distanciamento das instituições públicas alimentam a desconfiança das populações locais em relação às ações de reparação. Essa fragilidade institucional e social agrava a sensação de abandono e amplia a distância entre os direitos das pessoas atingidas e a realidade vivida no território.

Saúde Física e Mental
Os dados sistematizados pelo CAT/ATI, através do Dossiê e de dados do Registro Familiar, revelam que 54,3% dos atingidos relatam doenças físicas associadas ao contato com a água e 80,6% afirmam agravamento de enfermidades preexistentes.Os principais sintomas relatados incluem lesões na pele, coceira, dor abdominal, náuseas, problemas respiratórios e gastrointestinais.
A exposição prolongada a esses contaminantes resultou em um aumento expressivo de doenças crônicas e cânceres, segundo dados complementares citados em estudos da Fundação Getúlio Vargas (FGV). A mesma pesquisa indica que moradores de municípios atingidos pelo rompimento apresentam maior incidência de transtornos mentais, abortos e mortalidade precoce, que refletem além da contaminação ambiental uma falta de assistência do Estado para os municípios da Bacia do Rio Doce e grupos em vulnerabilidade social.
No campo da saúde mental, o cenário é igualmente alarmante: 53,2% dos entrevistados relataram sofrimento psicológico desde o rompimento da barragem. Ansiedade, tristeza, desânimo e insônia são os sintomas mais frequentes, e há relatos de depressão e transtorno do pânico. No entanto, apenas 18,9% receberam diagnóstico formal e menos de 20% estão em acompanhamento psicológico ou psiquiátrico. A carência de profissionais especializados demonstra que há uma demanda superior à atual capacidade de atendimento dos dois municípios: há apenas um psicólogo e um psiquiatra por município, atendendo cerca de 20 pessoas por semana.
Além do sofrimento físico e mental, a crise hídrica e econômica resultou em novos gastos com saúde: 85% dos atingidos afirmaram ter arcado com despesas adicionais para consultas, exames e medicamentos, totalizando, em média, R$1.700,00 mensais por família.
Além dos dados quantitativos, as rodas de diálogo realizadas entre abril e julho de 2024 evidenciaram o clamor das comunidades por atendimento digno. As principais demandas incluem a contratação de profissionais locais, melhoria da infraestrutura hospitalar, garantia de tratamento fora do domicílio com cobertura integral, e a criação de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) que atenda conjuntamente os municípios de Galiléia e Tumiritinga.
O documento também denuncia falhas na governança da reparação. Planos de ação em saúde elaborados por municípios e submetidos à Fundação Renova e à Câmara Técnica de Saúde (CT-Saúde) apresentam inconsistências o que levanta dúvidas sobre a transparência do processo e reforça o sentimento de desconfiança das populações atingidas
Desestruturação social e econômica
A desestruturação dos modos de vida do Território é um dos danos mais persistentes após o rompimento da barragem de Fundão, pois provoca diretamente a destruição das bases produtivas, dos vínculos comunitários e das perspectivas de futuro das populações ribeirinhas. Logo após o rompimento, atividades tradicionais como pesca, agricultura, pecuária e o turismo foram interrompidas, e as redes de solidariedade e convivência social se romperam.
Pequenos agricultores perderam suas terras e solos férteis; pescadores ficaram sem sustento com a morte dos peixes; e o comércio local entrou em declínio diante da redução da circulação de pessoas e da desconfiança quanto à qualidade dos produtos regionais.Segundo o CAT/ATI, mais da metade dos comerciantes de Tumiritinga e Galiléia encerraram suas atividades, enquanto 72,7% dos prestadores de serviços (como ambulantes, feirantes e trabalhadores domésticos) também abandonaram seus ofícios após o desastre.
O Registro Familiar, aplicado junto a 361 pessoas atingidas, revelou que 145 delas estavam envolvidas em atividades pesqueiras antes de 2015, e que a totalidade dessas práticas foi interrompida após o rompimento da barragem. Na agricultura, 70% dos produtores declararam ter perdido áreas produtivas, e quase metade das pessoas que produziam alimentos ou bebidas de forma artesanal (como doces, queijos e cachaças) relatou ter deixado de exercer essa atividade. Em consequência, também houve queda no fluxo turístico, especialmente na Praia do Jaó, em Tumiritinga.
O documento destaca que as consequências econômicas desdobram-se também no campo emocional, dois em cada três atingidos afirmaram ter perdido vínculos comunitários e familiares, e 64,9% tiveram seus projetos de vida interrompidos. A perda de renda e trabalho afeta a autoestima, a saúde mental e o convívio familiar e comunitário. Dois em cada três entrevistados afirmaram que o rompimento e o processo de reparação abalaram suas relações com familiares, amigos e vizinhos.
A desestruturação social e econômica evidencia que a reparação segue distante da realidade vivida nos territórios. O que se observa, portanto, é um rompimento de modos de vida, e não apenas de estruturas produtivas. Trata-se de um colapso das relações sociais e econômicas construídas ao longo de gerações, com impactos que ainda hoje reverberam nas identidades coletivas e nas possibilidades de futuro dos territórios atingidos.

Um Território em espera pela reparação
O Dossiê da Reparação – Volume 1 revela que os danos do rompimento da barragem de Fundão não cessaram. A lama se tornou símbolo de uma reparação inconclusa, marcada pela demora, pela desconfiança e pelo agravamento de diversas violações de direitos.
O documento defende a necessidade de um novo pacto pela reparação integral que assegure transparência na gestão dos programas, acesso digno à saúde e à água, compensações econômicas justas e fortalecimento das políticas públicas locais. Mais do que um relatório técnico, o Dossiê é um registro de memória, resistência e denúncia: uma construção coletiva que reafirma o protagonismo das populações atingidas e a urgência de transformar a reparação em realidade.O Dossiê da Reparação – Volume 2 , com lançamento previsto para o dia xxxx, aprofundará a análise sobre os danos da reparação, revelando como a demora, a falta de participação efetiva e as falhas na execução dos programas produziu novas formas de injustiça e sofrimento no Território 05.
Clique aqui para baixar o Dossiê da Reparação – Volume 1: ” Danos do Rompimento”
Texto por Andressa Cruz | CAT/ATI
Imagens por Wan Campos | CAT/ATI







